domingo, 18 de agosto de 2013

Canto I: A Lâmpada na Terra

Parte I:
Amor América (1400)

Parte II:

Parte III:

Parte IV:
Os rios acodem
            Orinoco
            Amazonas
            Tequendama
            Bío Bío

Parte V
Minerais

Parte VI:
Os homens

Chegam os pássaros

Tudo era voo em nossa terra.
Como gotas de sangue e plumas
os cardeais mergulhavam em sangue
no amanhecer de Anáhuac. *
O tucano era uma adorável
caixa de frutas envernizadas,
o colibri guardou as chispas
originais do relâmpago
e suas minúsculas fogueiras
ardiam no ar imóvel.

Os ilustres papagaios enchiam
as profundidades da folhagem
como lingotes de ouro verde
recém-saído da massa
dos pântanos submersos,
e de seus olhos circulares
mirava uma argola amarela
velha como os minerais.

Todas as águias do céu
nutriam sua estirpe sangrenta
no azul não habitado,
e sobre as penas carnívoras
voava acima do mundo
o condor, rei assassino,
frade solitário do céu,
talismã negro da neve,
furacão da falcoaria.

A engenharia do joão-de-barro
fazia do barro fragrante
pequenos teatros sonoros
onde aparecia cantando.

O atalha-caminhos **
ia dando o seu grito umedecido
na margem dos poços.
A torcaz araucana *** fazia
ásperos ninhos de mato
onde deixava a real prenda
de seus ovos azulados.

A loica **** do Sul, fragrante,
doce carpinteira de outono,
mostrava o seu peito estrelado
de constelação escarlate,
e o chincol ***** austral erguia
sua flauta recém-recolhida
da eternidade da água.

Mas, úmido como um nenúfar,
o flamingo abria as suas portas
de rosada catedral,
e voava como a aurora,
longe do bosque bochornoso
onde se pendura a pedraria
do quetzal,****** que de repente acorda,
se mexe, desliza, fulgura
e faz voar a sua brasa virgem.

Voa uma montanha marinha
para as ilhas, uma lua
de aves que vão para o Sul,
sobre as ilhas fermentadas
do Peru.
É um rio vivo de sombra,
é um cometa de pequenos
corações inumeráveis
que escurecem o sol do mundo
como um astro de cauda espessa
palpitando para o arquipélago.

E no final do iracundo
mar, na chuva do oceano,
surgem as asas do albatroz
como dois sistemas de sal,
instituindo no silêncio,
entre as rajadas torrenciais,
com a sua espaçosa hierarquia,
a ordem das soledades.

* Anáhuac: nome náhuatl, onde se encontra o atual Distrito Federal do México; significa literalmente "ribeira da água" (de atl: água e náhuac: ribeira, margem).
** atalha-caminhos: pássaro americano que se alimenta de mariposas.
*** torcaz araucana: pomba maior do que a comum, originária do Chile.
**** loica: pássaro chileno, apreciado pelo peito colorido e canto melodioso.
***** chincol: pássaro chileno.
****** quetzal: ave colorida da América tropical.

Alguns Animais

Era o crepúsculo do iguana.

Da arcoirisada rosácea
sua língua como um dardo
fundia-se na verdura,
o formigueiro monacal pisava
com melodioso pé a selva,
o guanaco* fino como o oxigênio
nas largas alturas pardas
ia calçando botas de ouro,
enquanto a lhama abria cândidos
olhos na delicadeza
do mundo cheio de rocio.
Os macacos trançavam um fio
interminavelmente erótico
nas ribeiras da aurora,
derrubando muros de pólen
e espantando o voo violeta
das borboletas de Muzo. **
Era a noite dos jacarés,
a noite pura e pululante
dos focinhos saindo do lodo,
e dos lamaçais sonolentos
um ruído opaco de armaduras
retornava à origem terrestre.

O jaguar tocava as folhas
com a sua ausência fosforescente,
o puma corre nas ramagens
como o fogo devorador
enquanto ardem nele os olhos
alcoólicos da selva.
Os texugos coçam os pés
do rio, farejam o ninho
cuja delícia palpitante
atacaram com dentes rubros.

E no fundo da água magma,
como o círculo da terra,
está a sucuri gigante
coberta de barros rituais,
devoradora e religiosa.

(Tradução por Paulo Mendes Campos)

* Guanaco: espécia de lhama americana.
** Muzo: município da Colômbia em cujos arredores abundam borboletas e outros insetos de rara beleza.

Vegetações

Às terras sem nomes e sem números
baixava o vento de outros domínios,
trazia a chuva fios celestes,
e o deus dos altares impregnados
devolvia as flores e as vidas.

Na fertilidade crescia o tempo.

O jacarandá levantava espuma
feita de resplendores transmarinos,
a araucária de lanças eriçadas
era magnitude contra a neve,
a primordial árvore acaju
de sua copa destilava sangue,
e no Sul dos lariços,
a árvore trovão, a árvore vermelha,
a árvore do espinho, a árvore mãe,
o ceibo vermelhão, a árvore borracha,
eram volume terrenal, a ressoar,
eram existências territoriais.
Um novo aroma propagado
enchia, pelos interstícios
da terra, as respirações
convertidas em fumo e fragrância:
o tabaco silvestre erguia
seu rosal de ar imaginário.
Qual lança terminada em fogo
surgiu o milho, e sua estatura
debulhou-se e de novo nasceu,
disseminou sua farinha, teve
mortos sob as suas raízes,
e, logo, em seu berço, viu
crescer os deuses vegetais.
Ruga e extensão, disseminava
a semente do vento
sobre as plumas da cordilheira,
espessa luz de gérmen e mamilos,
aurora cega amamentada
pelos unguentos terrenais
da implacável latitude chuvosa,
das cerradas noites mananciais
e das cisternas matutinas.
E ainda nas planuras
como lâminas de planeta,
sob uma suava povoação de estrelas,
rei da selva, o umbuzeiro detinha
o ar livre, o voo rumoroso
e cavalgava o pampa, dominando-o
com seu ramal de rédeas e raízes.

América arvoredo,
sarça selvagem entre os mares,
de polo a polo balançavas,
tesouro verde, a tua mata.
Germinava a noite
em cidades de cascas sagradas,
em sonoras madeiras,
extensas folhas que cobriam
a pedra germinal, os nascimentos.
Útero verde, americana
savana seminal, adega espessa,
um ramo nasceu como uma ilha,
uma folha foi forma de espada,
uma flor foi relâmpago e medusa,
um cacho arredondou seu resumo,
uma raiz desceu às trevas.

(Tradução por Paulo Mendes Campos)

Amor América (1400)

Antes do chinó e do fraque
foram os rios, rios arteriais:
foram as cordilheiras, em cuja vaga puída
o condor ou a neve pareciam imóveis:
foi a umidade e a mata, o trovão
sem nome ainda, as pampas planetárias.

O homem terra foi, vasilha, pálpebra
do barro trêmulo, forma de argila,
foi cântaro caraíba, pedra chibcha, *
taça imperial ou sílica araucana. **
Terno e sangrento foi, porém no punho
de sua arma de cristal umedecido,
as iniciais da terra estavam
escritas.

               Ninguém pôde
recordá-las depois: o vento
as esqueceu, o idioma da água
foi enterrado, as chaves se perderam
ou se inundaram de silêncio ou sangue.

Não se perdeu a vida, irmãos pastorais.
Mas como uma rosa selvagem
caiu uma gota vermelha na floresta
e apagou-se uma lâmpada da terra.

Estou aqui para contar a história.
Da paz do búfalo
até as fustigadas areias
da terra final, nas espumas acumuladas de luz antártica,
e pelas lapas despenhadas
da sombria paz venezuelana,
te busquei, pai meu,
jovem guerreiro de treva e cobre,
oh tu, planta nupcial, cabeleira indomável,
mãe jacaré, pomba metálica.

Eu, incaico do lodo, ***
toquei a pedra e disse:
Quem
me espera? E apertei a mão
sobre um punhado de cristal vazio.
Porém andei entre flores zapotecas
e doce era a luz como um veado,
e era a sombra como uma pálpebra verde.

Terra sem nome, sem América,
estame equinocial, lança de púrpura,
teu aroma me subiu pelas raízes
até a taça que bebia, até a mais delgada
palavra não nascida de minha boca.

(Tradução por Paulo Mendes Campos)

*chibcha: antiga cultura e povo da atual cidade de Bogotá (Colômbia)
**araucana: raça e cultura indígena originária do atual Chile e partes da Argentina.
***incaico do lodo: indígena autêntico.